O filme “Sete Minutos Depois da Meia-Noite” se passa na Inglaterra e retrata a história de Conor O’Malley, um garoto de 13 anos que experiencia uma série de eventos importantes, com destaque para o câncer em estado terminal sofrido por sua mãe e o bullying recorrente que sofre na escola. Resistindo às tentativas de contato de sua avó, e revoltoso com a ausência de seu pai (que mora nos Estados Unidos), Conor ingressa em um processo árduo para alcançar a elaboração das experiências traumáticas que vivencia. Através da fantasia, o garoto cria a figura de um “monstro-árvore” com o qual dialoga em diversas passagens do filme – esses diálogos consistem em histórias que de alguma forma assemelham-se ou conectam-se com as experiências vividas por si, como a separação de seus pais, a presença da avó (aversiva, embora bem intencionada), o bullying e a doença de sua mãe.
Ao correr dos eventos, o garoto sente-se cada vez mais isolado e “invisível”, chegando a apresentar comportamentos violentos em diversas situações, à medida em que o estado de saúde de sua mãe se deteriora, assim como sua relação com a avó, pai e colegas de escola. O ponto crucial do filme ocorre quando a interlocução dos diálogos com o monstro inverte-se, de forma que Conor se vê forçado pela criatura a contar-lhe sua história em uma das cenas finais e mais marcantes. Durante esse diálogo, o garoto reconhece seus sentimentos quanto à situação vivida pela mãe, bem como o peso de sentir-se isolado e solitário. A partir desse insight, torna-se possível reestabelecer a relação com sua avó e aceitar a eventual perda de sua mãe.
Conor possui um histórico de aprendizagem problemático, estando sempre inserido em contextos aversivos ou punitivos, como a separação dos pais, a doença da mãe, o bullying, entre outros. Muitos de seus comportamentos, apresentados durante a história do filme, estão relacionados diretamente com essas experiências – a exemplo, os acontecimentos que se desenrolam em torno da doença da mãe (negligência, acúmulo de responsabilidades, entre outros) contribuem para que Conor sinta-se tão isolado e afastado a ponto de sentir-se “invisível”. Esse sentimento de invisibilidade presente em sua história estará por trás de muitos comportamentos desadaptativos do garoto, com destaque à passividade com que se submete ao bullying praticado por seus colegas de escola – a propósito, Conor chega muitas vezes a procurar essas agressões, e tem um rompante de ira quando esses abusos cessam, uma reação emocional despertada pela mera possibilidade de sentir-se ainda mais invisível.
Durante o enredo do filme, alguns comportamentos de Connor O’Malley nos fornecem dados importantes sobre seu estado psicológico, como a notável maturidade que apresenta ao tomar conta das tarefas domésticas – comportamento que, embora possa parecer positivo, é fruto de grande desgaste para Conor, tanto a nível psíquico quanto das suas relações interpessoais, a exemplo dos atritos com sua avó. É principalmente através da fantasia e a criação do “monstro-árvore” que Conor passa a mudar o cenário, podendo assim vivenciar importantes diálogos com a criatura, através dos quais discrimina e elabora suas experiências – este, portanto, constitui para si um comportamento altamente funcional e positivo, responsável, em grande parte, pela elaboração das experiências traumáticas que vivencia, assim como a emissão de respostas diferenciais em contextos que lhe são aversivos, como o contato com a avó e o estado de saúde da mãe.
O comportamento de fantasia está amplamente presente na história de Conor – sua mãe, dada às artes e à imaginação, contava-lhe histórias e constantemente estimulava-o no sentido de criar e imaginar, de maneira que essas experiências se associam profundamente com a relação entre ambos. Posteriormente, Conor, sendo um garoto introspectivo, utiliza o recurso da fantasia no enfrentamento dos problemas que lhe acometem, em especial a doença da mãe. O filme nos traz, de maneira elucidativa, as experiências fantasiosas que Conor vivencia junto à figura do “monstro-árvore” – figura esta que ele cria a partir de diversas associações com as histórias que sua mãe lhe contava na infância (a própria árvore da qual o monstro é composto chega a ser referenciada pela mãe em alguns trechos do filme). Essas experiências são essenciais ao garoto, que obtêm, através destas, recursos para significar de maneira saudável o seu luto, abordando temas complexos e delicados na forma de metáforas e figuras que suavizam e ilustram aspectos da vida real.
Ao final da história do filme, Conor conclui um processo conturbado. Os recursos do sonho e da fantasia auxiliam-no na árdua tarefa de elaborar o momento de sua vida, aprimorando seu autoconhecimento e fazendo amainar os estímulos aversivos originados pela doença da mãe e todos os fatores que a circundam. Aceitando o luto, o rapaz pode finalmente descansar e emitir uma série de respostas diferenciais, a exemplo da sua postura no enfrentamento da doença da mãe, a retomada do contato com a avó, e até mesmo o fim da passividade com que recebe o bullying, reagindo e afirmando “Não sou invisível!”. Essas respostas diferenciais alteram significativamente a experiência do garoto, que se permite perder as esperanças no tratamento da mãe e se dispõe a ter um melhor relacionamento interpessoal – nessa etapa, o garoto não está mais isolado, e não possui sobre si o peso das responsabilidades de um adulto, passando a ser livre para agir e viver como um garoto comum, embora tenha sofrido uma importantíssima perda.
REFERÊNCIAS
ÁVILA, E. M. M.; AZEVEDO, L. A. O brincar como instrumento facilitador para o relato de eventos privados relacionados à hospitalização. Perspectivas em Análise do Comportamento, v. 10, n. 1, 2019.
BACHTOLD L. Os Sonhos na Terapia Comportamental. InterAção – Revista do Departamento de Psicologia da UFPR, v. 3, 21-34, 1999.
BORGES, N. M; CASSAS, F. A. Clínica Analítico-Comportamental: aspectos teóricos e práticos. Porto Alegre. Artmed, 2012.
BRONFENBRENNER, U. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos. Porto Alegre. Artmed, 2011.
DEL PRETTE, G. Terapia Analítico-Comportamental Infantil: Relações entre o brincar e comportamentos da terapeuta e da criança (Dissertação de mestrado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2006.
GUILHARDI, H. J. O modelo comportamental de análise de sonhos. Em RANGÉ B. (Org.), Psicoterapia comportamental e cognitiva (p. 257-267). Campinas. Editorial Psy, 1995.
GUILHARDI, H. J. Análise comportamental do sentimento de culpa. Ciência do comportamento: conhecer e avançar. 1ª ed. (pp. 173-200), 2002.
HABER, G. M.; CARMO, J. S. O fantasiar como recurso na clínica comportamental infantil. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva. São Paulo, v. 9, n. 1, p. 45-61, junho de 2007.
NALIN, J. A. R. O uso da fantasia como instrumento na psicoterapia infantil. Ribeirão Preto, v. 1, n. 2, p. 47-56, agosto de 1993.
PITANGA, A. V.; VANDERBERGHE L. Possibilidades da análise dos sonhos na terapia comportamental. Perspectivas em Análise do Comportamento, v. 1, n. 2, 2010.
SILVA, F. M. Uma análise behaviorista radical dos sonhos. Psicologia Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 13, n. 3, p. 435-449, 2000.